Vocês conhecem a controvérsia: ainda tem muito roqueiro tosco que delira pensando que seu estilo musical predileto foi criado por um cara pálida chamado Elvis Presley. Quem tem mais senso histórico e mais noção da quantidade de bullshit propagada pela branquitude, e que está envolvida na “Elvização” da gênese do rock, sabe que os “inventores do rock” não foram os branquelos mas os afrodescendentes, herdeiros dos escravizados que trafegaram traficados através do “Atlântico Negro” de que nos fala Paul Gilroy, através de figuras de Chuck Berry, Bo Diddley, Little Richard, dentre outros. Há muitos motivos inclusive para se afirmar que estes precursores foram eles mesmos precedidos por uma mulher negra e queer (Sister Rosetta Tharpe) e que teria sido a verdadeira “Mãe” do bagulho.
Por puro tesão pela polêmica quero aqui propor mais uma ferida narcísica à vaidade do macho tóxico roqueiroso e dizer que, ao contrário do que ele afirma (que todos os maiores gênios do gênero são machos cis, sendo o rock uma expressão cultural essencialmente masculinista), o indíviduo que mais fez na história do rock em prol da expansão de seus horizontes estéticos, poéticos, éticos e místicos foi uma indivídua genial chamada Patti Smith – aquela que foi pegar o Nobel de Literatura por procuração quando Bob Dylan, em sua reclusão irremediável, preferiu ficar em casa de boas.
Se John Lennon tinha razão ao cantar “woman is the nigger of the world”, então Patti não errou o alvo de seu petardo punk-poético presente neste ovo-sônico chamado Easter, um dos melhores álbuns de rock já feitos, em que ela se orgulha de sua marginalidade, de seu status de outsider, e com a potência equivalente ao do MC5 (lendária banda punk de Detroit, cujo guitarrista Fred Sonic Smith foi esposo de Patti), anuncia este evangelho dionisíaco, este testamento profano, esta estupenda e arrasadora poesia que reivindica os rebeldes para a resignificação – erguer da sarjeta às estrelas – da negritude e da queerdade:
UMA RIMBAUD DE SAIAS POETIZANDO O ROCK’N’ROLL – De maneira similar a Leonard Cohen, Patti Smith foi o tipo de artista que teve uma carreira literária respeitável antes de tentar a sorte na música. No entanto, enquanto Cohen abraçou uma sonoridade folk soturna, com arroubos místicos, sempre marcada por um vocal grave e uma lírica desesperada, Patti aderiu ao rock and roll garageiro e se tornou uma explosão elétrica de poesia flamejante nos primórdios do punk rock.
“Patti Smith é uma bem educada mulher americana, ela conhece a Bíblia e os poetas franceses, mas ela essencialmente está enraizada no rock and roll: é ele sua verdadeira cultura. É uma cultura física centrada em fugir de casa e começar a exploração sexual, shows de rock e suas inúmeras noites-sem-dormir, as drogas e a poesia, as ruas e os porões, as guitarras e sonhos…” (Assante)
Hoje reconhecida como escritora, memorialista, além de poetisa e compositora, Patti já tinha sido pintora e dramaturga antes de querer ser uma rock and roll star. O que diabos pode ter feito o rock’n’roll acabar pesando tanto em sua vida? Ela mesma narrou em 1973 o impacto que teve em sua vida o fato de ter visto, quando criança, os Rolling Stones no Ed Sullivan Show: “Aquilo não era música do garotinho da mamãe”, comentou ela. “Amor cego pelo meu pai foi a primeira coisa que sacrifiquei pelo Mick Jagger!”
Antes dos Stones, ela já tinha amado Little Richards e as Ronettes. E tinha venerado também, com paixão selvagem, um adolescente francês do século 19 que ela injetaria nas veias da música contracultural que os primeiros punks inventavam: Arthur Rimbaud. Desta síntese improvável de Jagger e Rimbaud, de Little Richards e William Blake, é que nasceu uma trajetória que têm início com a obra-prima Horses, seu álbum de estréia, onde tudo começa com ela dizendo, através de seu eu-lírico: “Jesus died for somebody’s sins but no mine…”
A singularidade de Patti Smith na história do rock está também no quanto ela transborda os limites do que se consideraria ser a “bolha dos roqueiros”, os paradigmas consolidados do que é uma atitude “roqueira”. Este transbordamento vem também do fato de que ela é uma artista multi-linguagens que, apesar de visceralmente roqueira, sentindo-se participar existencialmente da cultura rock sobretudo e acima de todas outras pertenças culturais e identitárias, soube transbordar por todos os lados – para a poesia, as artes performáticas, o audiovisual, a literatura em prosa… – com uma exuberância que acredito que arrancaria elogios de William Blake. Patti Smith encarna o provérbio infernal de Blake – “exuberance is beauty.”
Apesar de ser uma artista de ultra-vanguarda, perita em artes plásticas e literatura, que realizava em suas palavras um mundo poético extremamente idiossincrático, Patti Smith tinha também dentro de si uma garotinha bêbada de sonhos em relação à glória no mundo pop. Dizem que Patti Smith tencionava “agarrar a coroa que lentamente ia deslizando da cabeça dos Stones, que nem Iggy Pop nem Lou Reed haviam conseguido agarrar com vigor suficiente. O único pretendente, como Patti Smith disse a William Burroughs em 1979, era o Bowie, mas ele não era americano” (ASSANTE).
Ela só explodiria nas paradas em 1978, com o hit “Because the Night” (composto em conjunto com Bruce Springsteen), do brilhante álbum Easter. Mas aí, depois de ter influenciado o movimento punk e ter se tornado uma grande rock star, “começou a perceber que o rock não era o paraíso mas o inferno – era corrupto, mercenário e impuro como o resto do mundo. O rock não ia aperfeiçoar o mundo – iria somente explorá-lo para faturar dólares.”
Casou-se com o já falecido guitarrista do MC5, Fred “Sonic” Smith, com quem teve dois filhos, e pareceu ter prefido substituir o sonho de ser rock and roll star por um a vida mais modesta, de um certo recolhimento criativo, com algumas cautelosas ressurreições esporádicas em que ela sempre vinha a público com álbuns muito relevantes (dentre os quais destaco os maravilhosos Wave, de 1979, Dream of Life, de 1988, Gone Again, de 1996, e Gung Ho, de 2000).
Sem dúvida, ainda que Patti Smith tivesse apenas gravado seus 4 álbuns dos anos 1970, isto á teria sido o suficiente para garantir seu nome na história do rock, não apenas pela qualidade extraordinária daquele material – inclusive aquele contido em Radio Ethiopia, talvez o mais overlooked dos álbuns dela à época – mas também pelas incendiárias apresentações ao vivo. Ela mereceu compor a seleção dos gigs that changed the world:
“A debut album instantly compared to all the great rock’n’roll debut LPs, it fused art and energy in a way that was virtually incomprehensible in rock’s otherwise bloated and increasingly superfluous mid-Seventies. Six months later, Smith’s self-styled “three-chord rock merged with the power of the word” rolled into London, where a thrill-starved minority was eager to catch at first-hand what had been happening in New York clubs such as CBGB’s and Max’s Kansas City. High on rebellion, higher still on rock’n’roll mythology, Patti Smith was the one who stopped the rot. Misleadingly described as ‘the new Bruce Springsteen’, this electrifying performer, who packet out The Roadhouse on two consecutive nights, was a far more incendiary figure. Spearheading what she called ‘the fight against fat and Roman satisfaction’, Patti was lean and mean, her pasty complexion, sunken cheeks and fabulously androgynous look signifying something different altogether. (…) Future members of all-women punk bands the Slits and The Raincoats first crossed paths at Patti’s Roundhouse gigs.” – I WAS THERE, de Mark Paytress.
Pergunto-me, diante do fascínio que a vida e obra da Patti exerce sobre mim, sobre os caminhos que ela abriu para tornar-se tão visionária, e a resposta parece passar por Rimbaud, aquele que afirmava que “o poeta se torna visionário através de uma longa, sistemática e transbordante-das-fronteiras desorganização-de-todos-os-sentidos”.
Poeta é quem des-estabiliza os sentidos instituídos, que faz fluir o sistema linguístico ameaçado de enrijecimento. E no autor de Uma Temporada no Inferno ela pôde encontrar um adolescente enragé que acreditava na potência da palavra visceral, do verso original, para des-esclerosar um mundo que mostrava-se rígido demais por excesso de dogmas.
Na sequência, para passar a palavra para Patti Smith, para que ela abra para nós sua caixinha de souvenirs, compartilhamos em violeta alguns causos que ela nos conta em fina prosa lá no Mate-me Por Favor (A História Sem Censura Do Punk):
Jim Carroll (3º da esq. pra direita), autor de The Basketball Diaries,
adaptado pro cinema como Diários de um Adolescente
Publicado em: 06/09/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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